Carnaval é uma das maiores festividades do calendário brasileiro. Mas, não é uma comemoração feita só de alegria. Como festa popular que é, reflete toda a desigualdade social, econômica e cultural da formação de nosso povo. Neste texto falarei dessa desigualdade apenas sobre um aspecto: cultural.
O mito da democracia racial faz com que muitas pessoas alimentem a ideia pueril de que somos um país rico em diversidade social, pois nossa população é formada pela comunhão entre povos de origens diferentes e que isso agrega valor diferenciado as nossas manifestações. Esse pensamento chega ser ingênuo de tão raso.
A verdade é que a formação do nosso povo se deu de maneira muito violenta, sangrenta e cruel. Todas as desigualdades que identificamos hoje em nossa sociedade é resultado de como se deu a nossa formação. O combustível para esse processo estrutural foi o racismo – contra negros e indígenas. Foi o racismo que tornou possível o grande projeto (econômico) colonial europeu, que dependia da inferiorização dessas outras raças para prosperar. Por isso, a Europa criou e disseminou valores sociais e culturais que discriminavam e, consequentemente, mantinham uma relação de domínio do outro utilizando duas principais estratégias: primeira, a invalidação da cultura, religião e conhecimento filosófico-científico desses povos e segunda, a desumanização desses indivíduos, apoiada numa suposta incapacidade racional. Desde o período pré-colonial, esses dois pilares, apadrinhados pela religião, os pensadores e a imprensa têm, um grande papel na disseminação dessa ideologia racista.
Mas, o que tudo isso tem a ver com o Carnaval?
A música popular brasileira é uma invenção do povo, sobretudo dos negros que foram escravizados e depois abandonados sem qualquer amparo ou reparação. Pelo contrário, o Estado brasileiro passou a criminalizar várias práticas dos descendentes de raízes africanas ou que permitissem a sua emancipação . Proibidos de estudar, trabalhar, comprar terras para plantar e, até mesmo, de circular nas ruas sem emprego, a população negra foi cada vez mais escamoteada para as zonas periféricas e empobrecidas. Apesar de tudo isso, a população negra não sucumbiu e criou formas de se expressar e se defender das discriminações da cultura dominante, principalmente, através da música.
Portanto, as criações artísticas dos afro-brasileiros, para muito além da beleza e genialidade, são a mais pura demonstração do desejo de resistência a esse modelo de exclusão e hierarquização. Mesmo as elites brasileiras renegando a capacidade intelectual ao povo negro e tentando subtrair a autoria de suas criações artísticas, fato é que o que há de melhor na cultura musical genuinamente brasileira é de origem negra: o samba, o chorinho, a bossa nova.
O Carnaval é a consagração apoteótica do caos – este, entendido sem julgamento de valor, como a necessária desordem que há em toda ordem. São corpos que balançam, cantam e vibram liberdade. Entretanto, como toda equação precisa ser equilibrada, noutro prato da balança estão aqueles que aprisionam a definição de expressão artística e cultural nas concepções asséticas, homogenizadoras e preconceituosas. É comum ver manifestações artísticas e culturais periféricas e negras serem atacadas e depreciadas. No Carnaval essas agressões e desprestígios são acirrados. Querem empurrar uma cultura “aceitável” ao povo que originalmente contribuiu com a formação cultural brasileira. Cabe a quem dizer o que é cultura? A definição de arte é única?
Para os povos tradicionais africanos era de extrema importância que toda a comunidade aprendesse as histórias que revelavam os acontecimentos das vidas de seus antepassados, pois, elas se repetiam todos os dias. Partindo desse entendimento, podemos afirmar que, quem conhece o mínimo de História consegue identificar a repetição do preconceito com o pagode, o funk carioca, o rap e todas as expressões artísticas populares consideradas menos expressivas e metricamente inaceitáveis assim como foi com o samba, o chorinho e a bossa nova.
Sendo assim, essa repulsa intolerante por partes daqueles que mantém o monopólio dos privilégios numa sociedade desigual e exploratória em relação as expressões de resistência de um povo que, mesmo violentamente atacado, sobrevive e reinventa formas de vida é pura manifestação racista. Para combater a reprodução de um passado violador das epistemologias africanas, manipulador da semiótica nas estéticas negras e incentivador de teorias supremacistas é preciso uma postura decolonial diante da história, dos saberes e dos referenciais impostos pelas perversidades formatadas pela cultura dominante (quem detém e controla os meios de produção de riqueza, os meios de formação ideológica e os meios de difusão da informação).
A ideia de pensamento único, rígido, hegemônico é campo fértil para criar verdades absolutas, estancar aprofundamentos e negar outras realidades, criando sociedades cada vez mais universalistas, intolerantes e violentas.
Por isso, é crucial deslocar o paradigma eurocêntrico do lugar de exclusividade e superioridade nas perspectivas de pensamento, que nega (estrategicamente) legitimidade a outras abordagens, sob pena de compactuar com a perpetuação da desumanização, injustiças e inverdades, que excluem contribuições pluriversais de realidades, experiências e conhecimentos.
“A arte que aflora dos ventres colore a quebrada.
Sabedoria é preta. A magia é preta.
Que me afastam da ignorância suicida
E me aproximam de uma verdade instintiva.
Dura, mas necessária, etérea.
Estar emocionalmente viva é a prova mais escura
De que nesse sistema opressor o ancestral ainda encontra brechas.”
– trecho da composição “Fartura de Vida” Autoria de Nayra Lays –